sexta-feira, 4 de outubro de 2013

As juventudes e a luta por direitos

" Na sociedade e nos governos, ainda são vigentes muitos (pré)conceitos e projeções sobre “a juventude” que dificultam o (re)conhecimento das atuais vulnerabilidades e potencialidades dos jovens"
por Regina Novaes
           Os diferentes momentos de sua história, a sociedade brasileira sempre contou com a presença de jovens mobilizados por diferentes sonhos e causas. Porém, enquanto um particular “sujeito de direitos” – que demanda “políticas públicas” específicas –, a juventude só emergiu no final dos anos 1980, momento em que a “exclusão de jovens” se tornou parte constitutiva da questão social nacional e internacional.
Não por acaso, 1985 foi decretado o Ano da Juventude pelas Nações Unidas. Vivia-se, na época, o ápice da nova divisão internacional do trabalho, com o aprofundamento dos processos de globalização dos mercados, de desterritorialização dos processos produtivos e de flexibilização das relações de trabalho. 
No Brasil, assim como em vários países da América Latina, tais processos também foram acompanhados pelo esgotamento do modelo de modernização conservadora dos anos 1980 e pela crise da dívida externa. Assim, em tempos de Consenso de Washington, projetos de ajustes e “enxugamento do Estado” priorizaram o equilíbrio fiscal e o corte de gastos, interrompendo várias iniciativas de políticas sociais distributivistas e comprometendo as democracias que sucederam os regimes autoritários nos países da região. Tais mudanças econômicas, tecnológicas e culturais afetaram particularmente a juventude.
           As primeiras demandas em torno dos “problemas dos jovens” foram levadas a público por organismos internacionais, gestores e políticos nacionais, ONGs, organizações empresariais, setores de Igrejas e também sustentadas por um conjunto de grupos, redes e movimentos juvenis. A favor da “juventude”, em um movimento de mão dupla, envolveram-se instâncias do poder público e diferentes setores e atores da sociedade civil. Contudo, nesse primeiro momento, ainda não se falava muito em “direitos”. A ênfase estava, principalmente, na necessidade de contenção e prevenção.

Para conter o desemprego e prevenir a violência, tratava-se de “ressocializar”, “promover o retorno aos bancos escolares”, “capacitar para o trabalho”, “inserir em dinâmicas de integração social”, “fomentar o protagonismo e o voluntariado juvenil”. Nesse cenário, nos anos 1990, surgiram os “projetos sociais” voltados para jovens “em situação de risco”, moradores de periferias urbanas consideradas pobres e violentas.
Nessa época também surgiram os primeiros espaços governamentais de juventude em vários países da América Latina. Na ocasião, no Brasil registraram-se algumas iniciativas de criação de secretarias e coordenadorias municipais e poucas estaduais, mas não se criou um espaço governamental nacional de juventude. Mesmo assim, durante os governos de Fernando Henrique Cardoso, programas voltados para adolescentes e jovens foram introduzidos em vários ministérios, com destaque para o Ministério do Trabalho, assim como as organizações da sociedade civil foram incentivadas a lidar com jovens, de até 18 anos, por meio de ações coordenadas pelo Programa Comunidade Solidária.
Posteriormente, em 2005, no primeiro governo Lula, no âmbito da Secretaria Geral da Presidência da República, foram criados a Secretaria Nacional de Juventude e o Conselho Nacional de Juventude, com o objetivo de elaborar, validar, articular e avaliar programas e ações voltados para jovens de 15 a 29 anos. Na mesma ocasião foi criado o Programa Nacional de Inclusão de Jovens (ProJovem), que contempla pessoas de 18 a 29 anos que não terminaram o ensino fundamental. Em seguida foram realizadas a I (2008) e a II (2011) Conferências Nacionais de Políticas Públicas de Juventude, envolvendo jovens de diferentes identidades e espaços de participação, vindos dos quatro cantos do país.
Nesse novo contexto, a linguagem dos “direitos” passou a organizar e ressignificar um conjunto das demandas (de distribuição, de reconhecimento e de participação) da juventude. O resultado desse progressivo “enquadramento semântico” pode ser observado no texto-base da II Conferência de Políticas Públicas de Juventude, realizada em Brasília em dezembro de 2011. “Conquistar direitos e desenvolver o Brasil” foi o tema desse evento. 
E os direitos da juventude foram organizados em cinco eixos:  

1) direito ao desenvolvimento integral (trabalho, educação, cultura e comunicação); 
2) direito ao território (povos tradicionais, jovens rurais, direito à cidade, ao transporte, ao meio ambiente); 
3) direito à experimentação e qualidade de vida (saúde, esporte, lazer e tempo livre); 
4) direito à diversidade e vida segura (segurança, diversidade e direitos humanos); e 
5) direito à participação.

Como se pode observar pelos eixos acima transcritos, os chamados “direitos da juventude” podem ser localizados em uma dinâmica área de confluência entre os clássicos “direitos de cidadania” e os direitos humanos, que foram sendo paulatinamente reconhecidos em convenções internacionais. Dessa maneira, os temas remetem a conquistas históricas (pois cada geração de direitos propiciou a emergência da outra) que marcam o mundo globalizado. Mas isso ainda não é tudo. A maneira peculiar de classificar e anunciar os “direitos da juventude” também reflete a atual condição juvenil, na qual estão em profunda mutação os padrões de passagem da juventude para a vida adulta. 

1. Direitos à educação e ao trabalho: velhas demandas e novos conteúdos
Em 2011, foram muitos os exemplos de mobilizações juvenis que chegaram ao noticiário internacional.

       No Chile, os jovens, conhecidos como pinguins, que há alguns anos saíram às ruas para reivindicar acesso aos meios de transporte, voltaram às ruas para protestar contra a mercantilização da educação universitária. Imagens de “ações violentas” dos jovens ingleses provenientes de bairros de desempregados correram o mundo. 
    Na Espanha e em Portugal, os jovens “indignados” também reagiram ao desemprego, ocupando praças, levando consignas por reformas radicais na educação e no mundo do trabalho. 
      No Brasil, embora com pouco registro da imprensa, em várias capitais os jovens marcaram presença no espaço público, indagando por seu lugar nos rumos do “desenvolvimento”.
Entre eles, em comum um medo de sobrar, de não encontrar um lugar no mundo presente e futuro. Os certificados escolares não são mais garantia de inserção produtiva e a palavra “trabalho” sempre evoca incertezas. Mesmo em países com reconhecida cobertura educacional, os certificados escolares são como passaportes: necessários, mas por si só não garantem a viagem para o mundo do trabalho.Além disso, e cada vez mais, a aparência e o endereço funcionam como filtros seletivos no competitivo e mutante mercado de trabalho.
Por isso mesmo, nos espaços de mobilização juvenil no Brasil atualizam-se as demandas por direitos: “direito à educação de qualidade” e “direito ao trabalho decente”.etc
 
2. Direito ao território: juventudes locais, pertencimentos e circulação
Desde os anos 1990, em áreas pobres e violentas começaram a proliferar grupos culturais em torno de estilos musicais (tais como rock, punk, heavy metal, reggae, hip-hop, funk), artes cênicas, grafite, danças (street dance, break) e grupos esportivos (entre eles, futebol, basquete de rua e skate) a partir dos quais são levadas demandas juvenis ao espaço público.
Suas invenções, (re)conhecidas no conjunto como “cultura de periferia”, têm tido grande importância no processo de conscientização e mobilização por direitos de jovens dessa geração.

3. Direito à diversidade: identidades múltiplas e o lugar da solidariedade
Às questões de gênero, raça e etnia (herdadas dos anos 1970 e 1980), mais recentemente se somaram demandas voltadas às distintas orientações sexuais e aos “jovens com deficiência”, configurando-se, assim, um dinâmico mapa da diversidade da juventude brasileira.
Recentemente, no dia 26 de maio de 2012, vários jornais anunciaram a segunda edição da Marcha das Vadias em várias cidades do Brasil. Para quem não sabe, o movimento mundial intitulado SlutWalk começou em 2011, após um oficial da polícia de Toronto, no Canadá, dizer que, para evitar estupros, as mulheres deviam deixar de “se vestir como vadias”. O movimento mobilizou segmentos juvenis e se espraiou via internet. Nos protestos contra o machismo, as mulheres usam roupas provocantes e criam performances engraçadas e irreverentes.


       Cada vez mais convocados pela internet e demais tecnologias móveis, os participantes de uma manifestação pública não compartilham necessariamente todos os pontos de vista, sejam eles morais, ideológicos ou políticos.  Dessa maneira, as adesões parciais e pontuais fazem parte constitutiva da configuração do espaço público atual (do qual também faz parte a parcela de jovens engajados em partidos políticos, movimento estudantil e organizações profissionais, entre outras). Assim, para além de evocarem os valores da liberdade (direitos civis e políticos) e da igualdade (direitos econômicos e sociais), os direitos dos jovens (direitos difusos ou de terceira geração) necessitam acionar o valor da solidariedade para dar conta “das diferenças que os unem”.
E qual seria hoje o balanço do caminho percorrido? Em que pesem os esforços de muitos, há um longo caminho a percorrer para a efetivação dos “direitos da juventude”. Na sociedade e nos governos, ainda são vigentes muitos (pré)conceitos e projeções sobre “a juventude” que dificultam o (re)conhecimento das atuais vulnerabilidades e potencialidades dos jovens brasileiros. Contudo, nada será como antes. Interpretadas sob a óptica dos direitos, suas demandas já modificam a pauta das políticas públicas e se transformam em “causas” mobilizadoras que alimentam grupos, redes e movimentos de diferentes segmentos juvenis. Afinal, na noção de “direito” reside um potencial “contrapoder”, simbólico e prático.
(Regina Novaes Professora do Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia do Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da UFRJ)

TEXTO ADAPTADO DE: Revista Le Monde Diplomatique: Edição 64 - Novembro 2012
TEXTO INTEGRAL EM: ( http://www.diplomatique.org.br/artigo.php?id=1285)

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