sexta-feira, 4 de outubro de 2013

As juventudes e a luta por direitos

" Na sociedade e nos governos, ainda são vigentes muitos (pré)conceitos e projeções sobre “a juventude” que dificultam o (re)conhecimento das atuais vulnerabilidades e potencialidades dos jovens"
por Regina Novaes
           Os diferentes momentos de sua história, a sociedade brasileira sempre contou com a presença de jovens mobilizados por diferentes sonhos e causas. Porém, enquanto um particular “sujeito de direitos” – que demanda “políticas públicas” específicas –, a juventude só emergiu no final dos anos 1980, momento em que a “exclusão de jovens” se tornou parte constitutiva da questão social nacional e internacional.
Não por acaso, 1985 foi decretado o Ano da Juventude pelas Nações Unidas. Vivia-se, na época, o ápice da nova divisão internacional do trabalho, com o aprofundamento dos processos de globalização dos mercados, de desterritorialização dos processos produtivos e de flexibilização das relações de trabalho. 
No Brasil, assim como em vários países da América Latina, tais processos também foram acompanhados pelo esgotamento do modelo de modernização conservadora dos anos 1980 e pela crise da dívida externa. Assim, em tempos de Consenso de Washington, projetos de ajustes e “enxugamento do Estado” priorizaram o equilíbrio fiscal e o corte de gastos, interrompendo várias iniciativas de políticas sociais distributivistas e comprometendo as democracias que sucederam os regimes autoritários nos países da região. Tais mudanças econômicas, tecnológicas e culturais afetaram particularmente a juventude.
           As primeiras demandas em torno dos “problemas dos jovens” foram levadas a público por organismos internacionais, gestores e políticos nacionais, ONGs, organizações empresariais, setores de Igrejas e também sustentadas por um conjunto de grupos, redes e movimentos juvenis. A favor da “juventude”, em um movimento de mão dupla, envolveram-se instâncias do poder público e diferentes setores e atores da sociedade civil. Contudo, nesse primeiro momento, ainda não se falava muito em “direitos”. A ênfase estava, principalmente, na necessidade de contenção e prevenção.

Para conter o desemprego e prevenir a violência, tratava-se de “ressocializar”, “promover o retorno aos bancos escolares”, “capacitar para o trabalho”, “inserir em dinâmicas de integração social”, “fomentar o protagonismo e o voluntariado juvenil”. Nesse cenário, nos anos 1990, surgiram os “projetos sociais” voltados para jovens “em situação de risco”, moradores de periferias urbanas consideradas pobres e violentas.
Nessa época também surgiram os primeiros espaços governamentais de juventude em vários países da América Latina. Na ocasião, no Brasil registraram-se algumas iniciativas de criação de secretarias e coordenadorias municipais e poucas estaduais, mas não se criou um espaço governamental nacional de juventude. Mesmo assim, durante os governos de Fernando Henrique Cardoso, programas voltados para adolescentes e jovens foram introduzidos em vários ministérios, com destaque para o Ministério do Trabalho, assim como as organizações da sociedade civil foram incentivadas a lidar com jovens, de até 18 anos, por meio de ações coordenadas pelo Programa Comunidade Solidária.
Posteriormente, em 2005, no primeiro governo Lula, no âmbito da Secretaria Geral da Presidência da República, foram criados a Secretaria Nacional de Juventude e o Conselho Nacional de Juventude, com o objetivo de elaborar, validar, articular e avaliar programas e ações voltados para jovens de 15 a 29 anos. Na mesma ocasião foi criado o Programa Nacional de Inclusão de Jovens (ProJovem), que contempla pessoas de 18 a 29 anos que não terminaram o ensino fundamental. Em seguida foram realizadas a I (2008) e a II (2011) Conferências Nacionais de Políticas Públicas de Juventude, envolvendo jovens de diferentes identidades e espaços de participação, vindos dos quatro cantos do país.
Nesse novo contexto, a linguagem dos “direitos” passou a organizar e ressignificar um conjunto das demandas (de distribuição, de reconhecimento e de participação) da juventude. O resultado desse progressivo “enquadramento semântico” pode ser observado no texto-base da II Conferência de Políticas Públicas de Juventude, realizada em Brasília em dezembro de 2011. “Conquistar direitos e desenvolver o Brasil” foi o tema desse evento. 
E os direitos da juventude foram organizados em cinco eixos:  

1) direito ao desenvolvimento integral (trabalho, educação, cultura e comunicação); 
2) direito ao território (povos tradicionais, jovens rurais, direito à cidade, ao transporte, ao meio ambiente); 
3) direito à experimentação e qualidade de vida (saúde, esporte, lazer e tempo livre); 
4) direito à diversidade e vida segura (segurança, diversidade e direitos humanos); e 
5) direito à participação.

Como se pode observar pelos eixos acima transcritos, os chamados “direitos da juventude” podem ser localizados em uma dinâmica área de confluência entre os clássicos “direitos de cidadania” e os direitos humanos, que foram sendo paulatinamente reconhecidos em convenções internacionais. Dessa maneira, os temas remetem a conquistas históricas (pois cada geração de direitos propiciou a emergência da outra) que marcam o mundo globalizado. Mas isso ainda não é tudo. A maneira peculiar de classificar e anunciar os “direitos da juventude” também reflete a atual condição juvenil, na qual estão em profunda mutação os padrões de passagem da juventude para a vida adulta. 

1. Direitos à educação e ao trabalho: velhas demandas e novos conteúdos
Em 2011, foram muitos os exemplos de mobilizações juvenis que chegaram ao noticiário internacional.

       No Chile, os jovens, conhecidos como pinguins, que há alguns anos saíram às ruas para reivindicar acesso aos meios de transporte, voltaram às ruas para protestar contra a mercantilização da educação universitária. Imagens de “ações violentas” dos jovens ingleses provenientes de bairros de desempregados correram o mundo. 
    Na Espanha e em Portugal, os jovens “indignados” também reagiram ao desemprego, ocupando praças, levando consignas por reformas radicais na educação e no mundo do trabalho. 
      No Brasil, embora com pouco registro da imprensa, em várias capitais os jovens marcaram presença no espaço público, indagando por seu lugar nos rumos do “desenvolvimento”.
Entre eles, em comum um medo de sobrar, de não encontrar um lugar no mundo presente e futuro. Os certificados escolares não são mais garantia de inserção produtiva e a palavra “trabalho” sempre evoca incertezas. Mesmo em países com reconhecida cobertura educacional, os certificados escolares são como passaportes: necessários, mas por si só não garantem a viagem para o mundo do trabalho.Além disso, e cada vez mais, a aparência e o endereço funcionam como filtros seletivos no competitivo e mutante mercado de trabalho.
Por isso mesmo, nos espaços de mobilização juvenil no Brasil atualizam-se as demandas por direitos: “direito à educação de qualidade” e “direito ao trabalho decente”.etc
 
2. Direito ao território: juventudes locais, pertencimentos e circulação
Desde os anos 1990, em áreas pobres e violentas começaram a proliferar grupos culturais em torno de estilos musicais (tais como rock, punk, heavy metal, reggae, hip-hop, funk), artes cênicas, grafite, danças (street dance, break) e grupos esportivos (entre eles, futebol, basquete de rua e skate) a partir dos quais são levadas demandas juvenis ao espaço público.
Suas invenções, (re)conhecidas no conjunto como “cultura de periferia”, têm tido grande importância no processo de conscientização e mobilização por direitos de jovens dessa geração.

3. Direito à diversidade: identidades múltiplas e o lugar da solidariedade
Às questões de gênero, raça e etnia (herdadas dos anos 1970 e 1980), mais recentemente se somaram demandas voltadas às distintas orientações sexuais e aos “jovens com deficiência”, configurando-se, assim, um dinâmico mapa da diversidade da juventude brasileira.
Recentemente, no dia 26 de maio de 2012, vários jornais anunciaram a segunda edição da Marcha das Vadias em várias cidades do Brasil. Para quem não sabe, o movimento mundial intitulado SlutWalk começou em 2011, após um oficial da polícia de Toronto, no Canadá, dizer que, para evitar estupros, as mulheres deviam deixar de “se vestir como vadias”. O movimento mobilizou segmentos juvenis e se espraiou via internet. Nos protestos contra o machismo, as mulheres usam roupas provocantes e criam performances engraçadas e irreverentes.


       Cada vez mais convocados pela internet e demais tecnologias móveis, os participantes de uma manifestação pública não compartilham necessariamente todos os pontos de vista, sejam eles morais, ideológicos ou políticos.  Dessa maneira, as adesões parciais e pontuais fazem parte constitutiva da configuração do espaço público atual (do qual também faz parte a parcela de jovens engajados em partidos políticos, movimento estudantil e organizações profissionais, entre outras). Assim, para além de evocarem os valores da liberdade (direitos civis e políticos) e da igualdade (direitos econômicos e sociais), os direitos dos jovens (direitos difusos ou de terceira geração) necessitam acionar o valor da solidariedade para dar conta “das diferenças que os unem”.
E qual seria hoje o balanço do caminho percorrido? Em que pesem os esforços de muitos, há um longo caminho a percorrer para a efetivação dos “direitos da juventude”. Na sociedade e nos governos, ainda são vigentes muitos (pré)conceitos e projeções sobre “a juventude” que dificultam o (re)conhecimento das atuais vulnerabilidades e potencialidades dos jovens brasileiros. Contudo, nada será como antes. Interpretadas sob a óptica dos direitos, suas demandas já modificam a pauta das políticas públicas e se transformam em “causas” mobilizadoras que alimentam grupos, redes e movimentos de diferentes segmentos juvenis. Afinal, na noção de “direito” reside um potencial “contrapoder”, simbólico e prático.
(Regina Novaes Professora do Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia do Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da UFRJ)

TEXTO ADAPTADO DE: Revista Le Monde Diplomatique: Edição 64 - Novembro 2012
TEXTO INTEGRAL EM: ( http://www.diplomatique.org.br/artigo.php?id=1285)


A Magna Carta

(Magna Charta Libertatum - Inglaterra - 1215)


           Redigida em latim bárbaro, a Magna Carta ( Libertatum seu Concordiam inter regem Johannen at barones pro concessione libertatum ecclesiae et regni angliae) Carta magna das liberdades, ou Concórdia entre o Rei João e os Barões para a outorga das liberdades da Igreja e do rei inglês. Essa carta  foi a declaração solene que o rei João da Inglaterra, dito João Sem-Terra, assinou, em 15 de junho de 1215, perante o alto clero e os barões do reino.

                                                                CONTEÚDO DA CARTA
João, pela graça de Deus rei da Inglaterra, senhor da Irlanda, duque da Normandia e da Aquitânia e conde de Anjou, aos arcebispos, bispos, abades, barões, juízes, couteiros, xerifes, prebostes, ministros, bailios e a todos os seus fiéis súditos.

Sabei que, sob a inspiração de Deus, para a salvação da nossa alma e das almas dos nossos antecessores e dos nossos herdeiros, para a honra de Deus e exaltação da Santa Igreja e para o bem do reino, e a conselho dos veneráveis padres Estevão, arcebispo de Cantuária, primaz de Inglaterra e cardeal da Santa Igreja Romana... e dos nobres senhores Guilherme Marshall, conde de Pembroke ..., oferecemos a Deus e confirmamos pela presente Carta, por nós e pelos nossos sucessores, para todo o sempre, o seguinte:

1. A Igreja de Inglaterra será livre e serão invioláveis todos os seus direitos e liberdades: e queremos que assim seja observado em tudo e, por isso, de novo asseguramos a liberdade de eleição, principal e indispensável liberdade da Igreja de Inglaterra, a qual já tínhamos reconhecido antes da desavença entre nós e os nossos barões [...].

2. Concedemos também a todos os homens livres do reino, por nós e por nossos herdeiros, para todo o sempre, todas as liberdades abaixo remuneradas, para serem gozadas e usufruídas por eles e seus herdeiros, para todo o sempre [...].

--------------------------------------------------------------------------------

1. Não lançaremos taxas ou tributos sem o consentimento do conselho geral do reino (commue concilium regni), a não ser para resgate da nossa pessoa, para armar cavaleiro nosso filho mais velho e para celebrar, mas uma única vez, o casamento da nossa filha mais velha; e esses tributos não excederão limites razoáveis. De igual maneira se procederá quanto aos impostos da cidade de Londres,


2. E a cidade de Londres conservará todas as suas antigas liberdades e usos próprios, tanto por terra como por água; e também as outras cidades e burgos, vilas e portos conservarão todas as suas liberdades e usos próprios.


3. E, quando o conselho geral do reino tiver de reunir para se ocupar do lançamento dos impostos, exceto nos três casos indicados, e do lançamento de taxas, convocaremos por carta, individualmente, os arcebispos, abades, condes e os principais barões do reino; além disso, convocaremos para dia e lugar determinados, com a antecedência, pelo menos, de quarenta dias, por meio dos nossos xerifes e bailios, todas as outras pessoas que nos têm por suserano; e em todas as cartas de convocatória exporemos a causa da convocação; e proceder-se-á à deliberação do dia designado em conformidade com o conselho dos que não tenham comparecido todos os convocados.

.........................................................................

1. Ninguém será obrigado a prestar algum serviço além do que for devido pelo seu feudo de cavaleiro ou pela sua terra livre.

.........................................................................

1. A multa a pagar por um homem livre, pela prática de um pequeno delito, será proporcionada à gravidade do delito; e pela prática de um crime será proporcionada ao horror deste, sem, prejuízo do necessário à subsistência e posição do infrator (contenementum); a mesma regra valerá para as multas a aplicar a um comerciante e a um vilão, ressalvando-se para aquele a sua mercadoria e para este a sua lavoura; e, em todos os casos, as multas serão fixadas por um júri de vizinhos honestos.


2. Não serão aplicadas multas aos condes e barões senão pelos pares e de harmonia com a gravidade do delito.

...............................................................................

1. Nenhuma cidade e nenhum homem livre serão obrigados a construir pontes e diques, salvo se isso constar de um uso antigo e de direito.

..........................................................................

1. Os xerifes e bailios só poderão adquirir colheitas e quaisquer outras coisas mediante pagamento imediato, exceto se o vendedor voluntariamente oferecer crédito.

........................................................................... 

1. Nenhum xerife ou bailio poderá servir-se dos cavalos ou dos carros de algum homem livre sem o seu consentimento.,


2. Nem nós nem os nossos bailios nos apoderaremos das bolsas de alguém para serviço dos nossos castelos, contra a vontade do respectivo dono.

..............................................................


1. A ordem (Writ) de investigação da vida e dos membros será, para futuro, concedida gratuitamente e, em caso algum, negada.

...............................................................

1. Nenhum homem livre será detido ou sujeito à prisão, ou privado dos seus bens, ou colocado fora da lei, ou exilado, ou de qualquer modo molestado, e nós não procederemos nem mandaremos proceder contra ele senão mediante um julgamento regular pelos seus pares ou de harmonia com a lei do país.


2. Não venderemos, nem recusaremos, nem protelaremos o direito de qualquer pessoa a obter justiça.


3. Os mercadores terão plena liberdade para sair e entrar em Inglaterra, e para nela residir e a percorrer tanto por terra como por mar, comparando e vendendo quaisquer coisas, de acordo com os costumes antigos e consagrados, e sem terem de pagar tributos injustos, exceto em tempo de guerra ou quando pertencerem a alguma nação em guerra contra nós. E, se no começo da guerra, houver mercadores no nosso país, eles ficarão presos, embora sem dano para os seus corpos e os seus bens, até ser conhecida por nós ou pelas nossas autoridades judiciais, como são tratados os nossos mercadores na nação em guerra conosco; e, se os nossos não correrem perigo, também os outros não correrão perigo.


4. Daqui para diante será lícito a qualquer pessoa sair do reino e a ele voltar, em paz e segurança, por terra e por mar, sem prejuízo do dever de fidelidade para conosco; excetuam-se as situações de tempo de guerra, em que tal direito poderá ser restringido, por um curto período, para o bem geral do reino, e ainda prisioneiros e criminosos, à face da lei do país, e pessoas de países em guerra conosco e mercadores, sendo estes tratados conforme acima prescrevemos.


.....................................................................

1. Só serão nomeados juízes, oficiais de justiça, xerifes ou bailios os que conheçam a lei do reino e se disponham a observá-la fielmente.

.......................................................................

1. Todos os direitos e liberdades, que concedemos e que reconhecemos enquanto for nosso o reino, serão igualmente reconhecidos por todos, clérigos e leigos, àqueles que deles dependerem.


2. Considerando que foi para honra de Deus e bem do reino e para melhor aplanar o dissídio surgido entre nós e os nossos barões que outorgamos todas as coisas acabadas de referir; e querendo torná-las sólidas e duradouras, concedemos e aceitamos, para sua garantia, que os barões elejam livremente um conselho de vinte e cinco barões do reino, incumbidos de defender e observar e mandar observar a paz e as liberdades por nós reconhecidas e confirmadas pela presente Carta; e se nós, a nossa justiça, os nossos bailios ou algum dos nossos oficiais, em qualquer circunstância, deixarmos de respeitar essas liberdades em relação a qualquer pessoa ou violarmos alguma destas cláusulas de paz e segurança, e da ofensa for dada notícia a quatro barões escolhidos de entre os vinte e cinco para de tais fatos conhecerem, estes apelarão para nós ou, se estivermos ausentes do reino, para a nossa justiça, apontando as razões de queixa, e à petição será dada satisfação sem demora; e se por nós ou pela nossa justiça, no caso de estarmos fora do reino, a petição não for satisfeita dentro de quarenta dias, a contar do tempo em que foi exposta a ofensa, os mesmos quatro barões apresentarão o pleito aos restantes barões; e os vinte e cinco barões, juntamente com a comunidade de todo o reino (comuna totiu terrae), poderão embargar-nos e incomodar-nos, apoderando-se de nossos castelos, terras e propriedades e utilizando quaisquer outros meios ao seu alcance, até ser atendida a sua pretensão, mas sem ofenderem a nossa pessoa e as pessoa da nossa rainha e dos nossos filhos, e, logo que tenha havido reparação, eles obedecer-nos-ão como antes. E qualquer pessoa neste reino poderá jurar obedecer às ordens dos vinte e cinco barões e juntar-se a eles para nos atacar; e nós damos pública e plena liberdade a quem quer que seja para assim agir, e não impediremos ninguém de fazer idêntico juramento.


(1) Outorgada por João sem Terra em 15 de Junho de 1215, e confirmada; seis vezes por Henrique III; três vezes por Eduardo I; catorze vezes por Eduardo III; seis vezes por Ricardo II; seis vezes por Henrique IV; uma vez por Henrique V, e uma vez por Henrique VI. Inglaterra.

(2) Excertos.

 ( Fonte: Comparato, Fábio Konder. A Afirmação Histórica dos Direitos Humanos. São Paulo, Ed. Saraiva, 1999.)

Brasil: “Nós vamos jogar o avião no Palácio do Planalto”.

Renhe e Dias retirando o corpo de Vangêlis
O corpo do copiloto Salvador Evangelista sendo retirado pelo piloto Gilberto Renhe e o
 comissário Ronaldo Dias. Créditos: O Popular.
Nós vamos pra cima do Palácio do Planalto. Nós vamos jogar o avião no Palácio do Planalto. Eu quero matar o Sarney!”.
O sequestrador Raimundo Nonato
O sequestrador do voo VP 375, Raimundo Nonato Alves da Conceição.

          Estas palavras foram proferidas pelo maranhense Raimundo Nonato Alves da Conceição após sequestrar um avião em 29 de setembro de 1988 — 13 anos antes do “11 de setembro” norte-americano. Indignado com a perda de seu emprego e responsabilizando diretamente o então presidente José Sarney por estar desempregado, Conceição sequestrou um avião, matou seu copiloto e chegou bem perto de arremessá-lo no Palácio do Planalto.
Raimundo Nonato Alves da Conceição contava à época com 28 anos de idade, e trabalhava como tratorista de uma construtora em Minas Gerais, quando foi demitido em junho de 1988. Sem conseguir encontrar novo emprego, inconformado com sua situação e não vislumbrando melhoria devido à instabilidade da economia brasileira vivenciada ao longo dos anos 1980, Conceição decidiu assassinar o Presidente do País — a quem atribuía à culpa. Também teria desejado obter notoriedade no “protesto”.
Conceição comprou sua passagem aérea para o dia 29 de setembro, na extinta VASP, para o voo VP 375 (Porto Velho/RO-Rio de Janeiro/RJ), que possuía escalas em Cuiabá, Brasília, Goiânia e Belo Horizonte. Na data prevista, 60 passageiros — incluindo Raimundo — embarcaram na capital mineira (Belo Horizonte), juntando-se aos 38 que já se encontravam a bordo (mais 8 tripulantes, totalizando 106 pessoas no jato). O maranhense sentou na poltrona 3C, próxima à cabine dos pilotos.
No cockpit do Boeing 737-300 da VASP, encontravam-se o piloto Fernando Murilo de Lima e Silva e seu copiloto, Salvador Evangelista, o “Vangêlis”. Ambos divorciados, amigos e populares na empresa. “Vangêlis era um crianção. Murilo não ficava atrás. (…) Murilo era extremamente popular na empresa. Todos, co-pilotos, chefes de equipe e comissários, gostavam de voar com ele. Deram-lhe o apelido de Cafajeste, com o qual ele parecia não se importar”. (SANT’ANNA, 2001, p. 111).
O terror começou quando a aeronave sobrevoava o Estado do Rio de Janeiro. Armado com um revólver calibre .32 e bem municiado, Raimundo Nonato se dirigiu à cabine de comando e disparou contra o comissário Dias. O disparo passou raspando pelo lado direito do rosto e varou sua orelha — por pouco Dias não foi morto.
O comandante Murilo logo teria percebido que se tratava de um tiro e pediu que a cabine fosse trancada — “Porra, isso foi um tiro! Trava aí, trava a porta!”. Raimundo, quando percebeu o trancamento da porta, começou a disparar contra a porta que não possuía qualquer blindagem.
Os disparos acertaram diversos instrumentos do painel de controle e a perna direita de Gilberto Renhe (copiloto aspirante a comandante de voo da VASP que se encontrava como passageiro extra no voo).
Temendo que todos na cabine fossem mortos e o jato caísse, Murilo pediu que a porta do cockpit fosse aberta ao sequestrador. Através de um código universal de sequestro, Murilo emitiu alerta ao Centro Integrado de Defesa Aérea e Controle de Tráfego Aéreo (CINDACTA), que prontamente lhe respondeu “Ciente, 375”.
O sequestrador imediatamente mandou que a aeronave fosse para Brasília, ao passo que Vangêlis, mesmo que lentamente, abaixou-se para pegar seu microfone e foi atingindo por um tiro na têmpora. Vângelis estava morto. Seu corpo caiu sobre o manche e lá permaneceu. Foi um choque para Fernando Murilo, mas se manteve calmo.
Quando o piloto indagou o sequestrador sobre o que deveria fazer ao chegar em Brasília, obteve como resposta: “Nós vamos pra cima do Palácio do Planalto. Nós vamos jogar o avião no Palácio do Planalto. Eu quero matar o Sarney!” — o comandante da aeronave teve a impressão de que Raimundo era “louco varrido”.
Retornando à Brasília (onde já havia realizado escala), a aeronave sobrevoava o Estado de Goiás, quase sem combustível e os planos de Murilo não incluíam jogar o avião contra o Planalto. O sequestro do voo VP 375 havia se tornado assunto de Estado e um caça Mirage da Força Aérea Brasileira (FAB) passou a acompanhar o Boeing.
Caça Mirage da FAB atrás do Boeing 737-300 sequestrado.
Caça Mirage da FAB acompanhando o Boeing 737-300 sequestrado. Imagem captada por câmera da Rede Globo.

          Murilo sabia que algo tinha que ser feito. Ele, como muitos outros passageiros, também receavam que Raimundo Nonato tivesse cúmplices entre os passageiros. O comandante decidiu fazer manobras violentas com o avião na tentativa de nocautear o carrasco. Decidiu fazer um tonneau. “Embora tonneau fosse um procedimento usual num avião militar de treinamento ou de caça, ninguém jamais ousara executá-lo num Boeing 737, estando totalmente fora de suas especificações. Consistia em fazer um giro completo com a aeronave, em torno de seu próprio eixo”. (SANT’ANNA, 2001, p. 149, grifo nosso)
Preocupado com a segurança dos passageiros, alertou-os ligando e desligando o aviso de “apertar o cinto” sem que Nonato percebesse e executou a manobra. Após a manobra, inesperadamente, o sequestrador se manteve firme (havia se segurado à porta e ainda portava o revólver). Fernando Murilo decidiu ser mais ser agressivo e deu início à manobra parafuso.
Se o tonneau é uma manobra violenta, o parafuso é devastador. O avião perde a sustentação e cai de bico, girando as asas como um pião — daí o nome. Para comandar seu parafuso, Murilo inclinou a asa esquerda e deu um coice no pedal. A asa esquerda entrou em estol (perdeu a sustentação — vale dizer: deixou de ser asa). (…) O Vasp 737 mergulhou sobre a cidade de Goiânia, as asas em rodopio. Tum, tum, tum[!], a cada giro Murilo temia que as asas se soltassem. Na cabine de passageiros, em meio à gritaria que se seguiu, cada um teve um pensamento e uma reação. Mas todos tiveram certeza de que viviam seus últimos minutos”. (SANT’ANNA, 2001, p. 150)
Manobras tonneau e parafuso
Manobras – tonneau e parafuso – executadas pelo capitão Fernando Murilo. Créditos: Ivan Sant’anna.

           Murilo por pouco não perdeu o controle do avião. Incrivelmente, além da estabilização e das poucas avarias sofridas, o avião logo se deparou com a pista de pouso do Aeroporto Santa Genoveva/GO na sua frente. Dessa vez, Raimundo se encontrava desnorteado. Havia sido jogado para fora do cockpit, mas logo recuperaria sua arma. O parafuso permitiu que o jato da VASP pudesse aterrissar sem a presença do sequestrador.
As pessoas que se encontravam na torre de controle, no pátio e na sacada do aeroporto — e que viram o Vasp mergulhar, na saída do parafuso — tiveram a nítida impressão de que o jato iria se espatifar contra o solo. Viram-no sumir numa depressão próxima à cabeceira da pista. Aguardaram angustiados a explosão. Mas, surpreendentemente, o Boeing ressurgiu das profundezas da baixada e se aproximou para o pouso”. (SANT’ANNA, 2001, p. 155)
Com a aeronave no chão, às 13h45, o sequestrador iniciou negociação com as autoridades com o objetivo de preparar sua fuga tendo Murilo como intermediário. Conceição primeiramente solicitou combustível para ir até Brasília, depois um caça e, por fim, um avião Bandeirante da FAB. Desses pedidos, apenas o último foi atendido – na verdade, apenas foi aceito porque se tratava de uma armadilha montada pela Polícia Federal visando captura-lo.
De acordo com o que foi decidido nas negociações, Nonato teria que desembarcar do Boeing e embarcar no Bandeirante. Para isso, utilizou os comissários Valente e Ângela (“Angelão”) e o piloto Murilo como proteção. Quando próximos ao avião da FAB, o piloto auxiliou Conceição a embarcar (não havia escada), mas, para a surpresa de ambos, havia um agente da PF escondido e armado com uma pistola .765 dentro do avião. O agente imediatamente efetuou o disparo, mas quase acertou Murilo. Todos se assustaram e os comissários fugiram em direção ao matagal que circundava o aeroporto.
Comandante Fernando Murilo no hospital
O comandante Fernando Murilo baleado na perna após o sequestro.

           Sem se importar se seria ou não atingido pelos policiais e militares, Conceição disparou contra o comandante. Este, incrivelmente, saltou, livrando seu peito do disparo, mas acabou atingido na perna esquerda e saiu correndo em ziguezague para o Boeing da VASP. Conta-se que a adrenalina estava tão alta que o piloto correu e nem parecia estar baleado. Simultaneamente, o sequestrador atirou outras cinco vezes sem êxito, ao passo que o agente federal presente no Bandeirante o neutralizou com três tiros não letais.
Próximo às 19h de 29 de setembro de 1988, após 8 horas de sequestro, finalmente chegou ao fim o dramático sequestro do Boeing 737 da VASP.
Raimundo Nonato foi levado ao hospital e apresentou melhoras significativas. Entretanto, três dias após o sequestro, misteriosamente, encontrava-se morto. A causa oficial da morte foi infecção por anemia falciforme.
Ainda hoje a morte de Raimundo Nonato gera grande desconfiança. O legista responsável pelo registro de óbito foi Badan Palhares, o mesmo envolvido na contraditória identificação do “Anjo da Morte”, Josef Mengele (médico nazista que viveu no Brasil) e nas diversas autópsias, também controversas, da morte de P.C. Farias.
Raimundo Nonato sedado e algemado no hospital. Dias depois morreu.
Raimundo Nonato sedado e algemado no hospital. Morreu dias depois.
Créditos: O Globo.

            Após o sequestro, o comandante foi condecorado com as medalhas do Mérito Santos-Dumont e da Ordem do Mérito Aeronáutico. Os registros de parâmetros de voo do jato assustaram os técnicos quando conferidos: teoricamente, o avião não poderia ter suportado as manobras.
O comandante não se permite entusiasmo ao falar das medalhas do Mérito Santos-Dumont e da Ordem do Mérito Aeronáutico com que foi condecorado. ‘As mesmas medalhas foram dadas à esposa do ex-presidente (Luiz Inácio) Lula (da Silva), ao, na época, Ministro da Fazenda, Maílson da Nóbrega, e a muitos outros em quem não vejo mérito algum para as mesmas.’” (PEREIRA, 2013, s/p)
Os passageiros ainda vivos, incluindo os estrangeiros, nutrem grande sentimento de gratidão para com o comandante Fernando Murilo. Muitos juraram eterna gratidão ao comandante que, calmamente, contornou a situação e deu o melhor de si. Tudo, sempre pensando no bem-estar dos seus passageiros.
Hoje em dia, o comandante herói lamenta o não reconhecimento do ex-Presidente da República, José Sarney — ”O ex-presidente Sarney, sem comentários, nunca me dirigiu a palavra“.
Atualmente, Fernando Murilo de Lima e Silva trabalha fazendo o que mais gosta: voar (transportando cargas aéreas).

Referências:
SANT’ANNA, Ivan. Caixa-Preta: o relato de três desastres aéreos brasileiros. Rio de Janeiro: Objetiva, 2001.
PEREIRA, Demétrio Rocha. Piloto que evitou atentado a Sarney: “Nunca me dirigiu a palavra”.
STOCHERO, Tahiane. Sequestrador tentou jogar avião no Planalto 13 anos antes do 11/9.
(FONTE:  http://www.imagenshistoricas.com.br/nos-vamos-jogar-o-aviao-no-palacio-do-planalto/ )